sábado, outubro 11, 2003

Eu sou o entardecer, as breves horas
Que perpassam nas flores que se fecham
E guardam em si o segredo inviolado
Da vida.

Sou o entardecer, em vôos breves
Círculo descrito ao vento norte
Grito sem alma, desafio, resposta
Ao tumulto que me agita
E eu não sei

Eu não conheço o que me leva
Nesta tarde
Desenhada na fímbria do horizonte
Em fogo, em gelo, em lava incendiada
Pelo fio de fumo que se eleva
E que me leva
Ao coração arruinado da cidade.


E se regresso ao pesado som do ferro
– o som do sino -
Eu que da morte nada sei, ou do amor
Entendo um prenúncio de alegria
na clara melodia
desse canto de horas mortas.

(Lenta como o rio a tarde flui, aguada,
Sob fina camada de geada).


Do outro lado do espelho

As ruas, as casas, a multidão.
Um rio e as suas margens
E ainda o cume das montanhas e os fatos de senhora.
O infinito cabe nesta montra de loja
Onde me detenho, instante breve,
A mirar o céu.

Do outro lado, está o irreflectido,
O cenário de inverno em tons pastel
A inexpressão atenta do boneco
Familiar, no seu conjunto abstracto
De saia e casaco.

Eu não vejo grande coisa para além disso,
Confesso.
São patéticas as nuvens que desfilam pelo vidro
Sabe-o o boneco e sei-o eu
E sabem-no,ao canto, as estrelícias rubras
plásticas
A quem invejo a certeza coriácea...

Mas vejo surgir do meio das echarpes e gravatas,
A imagem de um homem em demanda.
...“Quebrada a lança já, rota a armadura”...
oferece-se-me pensar
ao vê-lo afrontar de peito aberto
a multidão que avança como o vento
e como as nuvens,cumpre o seu destino.

Aproxima-se pois, na sua busca.
Aproxima-se da montra, o seu reflexo
Aproxima-se...
Não de mim – nem do espelho de Alice onde caberia o Universo...
Mas da porta da loja, perguntando à empregada:
-Vendem roupa unissexo?

É esta a natureza dos afectos.

Quando a noite chega
Nada mais há que pedir ou dar
Ao ódio, quando falho de crença.
Ele extingue-se no fio do horizonte
Como o sol no ocaso, milagre feito vinho,
o doce amargo
Veneno
Do ódio.

A dor,
Há quem a cubra de brocado.
(Por mim, prefiro lenço azul, bordado
se há rumor de ondas em olhos marejados).

Enfim,
Um gesto de abandono.
Que a ira é ida há muito e o amor urge
E rebenta como as ervas dos caminhos
Nas manhãs de geada e vento agreste.